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Rap, resistência e Estado: o que revela a operação mais letal da história do Rio

Enquanto o governo celebra "sucesso operacional", mães enterram seus filhos; Artistas e líderes comunitários se manifestam diante da operação.

Na última terça-feira, 28 de outubro, o Rio de Janeiro viveu a operação policial mais letal da história do Estado. 121 pessoas foram mortas nos complexos da Penha e do Alemão, um número que superou, no mesmo dia, o total de mortos na Faixa de Gaza. Enquanto o noticiário repete a palavra “operação”, quem vive o cotidiano das comunidades fala em chacina.

Entre corpos, lágrimas e tiros, mais uma vez o rap se fez voz e arquivo da dor coletiva.

A favela quer viver

Nas primeiras horas durante a chacina, as redes sociais se transformaram em lugar de desabafo e mobilização. Cria das favelas cariocas, artistas e líderes comunitários reagiram.

O rapper Tokio DK, nascido na Baixada Fluminense, contou que o estúdio comunitário, Setor B, de Wendel Ferreira, conhecido como Real Fubá, foi destruído durante a operação. O espaço, que funcionava como ponto de criação e oportunidade para jovens, foi confundido com um “QG do tráfico” por ser uma casa bem estruturada. Tokio destacou que, na favela, também há beleza, investimento e sonho. E que a arte é, para muitos, a única saída possível. “A favela quer viver”, resumiu ele.

Na mesma linha, o líder comunitário e MC, DK 47, integrante do grupo ADL de Teresópolis (RJ), reforçou a mesma indignação. “Meu trabalho é tirar as crianças do tráfico e das drogas. Por isso temos lazer, esporte e cursos profissionalizantes onde eu atuo”, explica.

MC Maneirinho, um dos principais representantes do funk carioca, publicou uma carta aberta emocionada lembrando que cresceu em meio a guerra e perdeu primos para as facções. Ele afirmou que a polícia sabe como combater o tráfico, mas prefere o marketing da eleição. “Essas mortes serão só números”, lamentou, evidenciando a banalização da tragédia quando o corpo é pobre.

O rapper Leal, do grupo Primeiramente, sintetizou o pensamento de muitos artistas que veem nas operações um projeto político travestido de segurança pública. Se o objetivo fosse realmente combater o tráfico, disse, as ações aconteceriam nos portos e nas fronteiras, e não nas casas de trabalhadores. O que existe, segundo ele, é uma política de extermínio seletiva, feita para manter o medo e o controle sobre a população periférica.

Já o baiano Aka Rasta, radicado no Rio de Janeiro, foi incisivo: “os bandidos mais perigosos do Brasil moram nas áreas mais ricas, e nelas não há operações policiais”. Sua fala aponta o abismo social que define a geografia da violência: nas zonas nobres, a lei é aplicada com moderação; nas favelas, com fuzil. Ber Cartel, líder do grupo carioca Cartel MCs, complementou, denunciando a engrenagem que sustenta essa lógica. Segundo ele, os mesmos que financiam o crime e vendem armas são os que posam de justiceiros em frente às câmeras.

“Enquanto uns querem mudar o país matando, nós queremos mudar o país salvando”. As palavras do fundador da CUFA (Central Única das Favelas) e atual CEO da Favela Holding, Celso Athayde, ecoam o sentimento de quem vive o cotidiano desses territórios e luta para oferecer alternativas concretas: “100% das pessoas aqui querem o mesmo que qualquer um: viver em paz, criar os filhos, trabalhar, sonhar. A maior prova é a existência de espaços como os nossos, mantidos sem um centavo do poder público. Enquanto uns querem mudar o país matando, nós queremos mudar o país salvando.”

Para o sociólogo René Araújo, formado pela Unifesp e professor do Anglo Vestibulares, essas operações só se perpetuam porque parte significativa da sociedade as legitima. “Ver corpos estendidos no meio da favela é importante para quem estabelece uma relação direta entre pobreza e tráfico”, explica. É essa naturalização da morte, sustentada pelo apoio tácito da opinião pública, que dá permissão para que o Estado cometa crimes “desde que seja no morro”.

Ao ouvir o que dizem artistas, especialistas e líderes comunitários, fica a constatação: a favela pede direito à vida.

O extermínio da juventude negra

O Atlas da Violência 2020 (Ipea/Fórum Brasileiro de Segurança Pública) mostra que, entre 2008 e 2018, a taxa de homicídios entre jovens negros subiu de 53,3 para 60,4 por 100 mil habitantes, enquanto entre jovens brancos caiu 12,9%. Segundo a Agência Brasil, quase 90% das vítimas de operações policiais são negras.

Pesquisadoras como Flávia Lemos (UFPA) e Janaína Bueno Bady & Denise Quaresma Silva (PUC-RS) explicam que o “extermínio da juventude negra” resulta da fusão entre racismo estrutural e criminalização antecipada. Nos territórios onde o Estado é presença constante, mas proteção ausente, a juventude preta e periférica vive sob regime de risco permanente — o controle se exerce pela bala, não pela política pública.

Quem foram os mortos

O Relatório da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio identificou 115 das 117 pessoas mortas. Segundo o documento, 95% foram classificadas como ligadas ao Comando Vermelho e 54% eram de fora do estado. A Polícia Civil afirmou que 97 tinham “históricos criminais relevantes” e 59, mandados de prisão em aberto. Outros 17 não tinham antecedentes, mas 12 foram apontados por “indícios de participação no tráfico em redes sociais”. Nenhum dos mortos havia sido formalmente denunciado pelo Ministério Público.

E o principal alvo, Edgar Alves de Andrade (“Doca”), líder do CV, segue foragido. A OAB-RJ criou um observatório para acompanhar a apuração da legalidade da operação.

O que diz o direito

Segundo o advogado criminalista Gabriel Roque, a Constituição prevê a responsabilização do Estado por danos causados por seus agentes, mas a prática é outra. O Ministério Público, que deveria fiscalizar as operações, frequentemente depende das próprias polícias.

“O Estado responde objetivamente, mas o agente só é punido se houver dolo ou culpa. Se agir no ‘estrito cumprimento do dever legal’, é isento”, explica Roque. A “legítima defesa”, lembra o advogado, também é usada para afastar punições. “Polícia e MP fazem parte do mesmo eixo do aparato estatal, o que dificulta a responsabilização.”

As novas leis e a PEC da Segurança

Após a operação, o governo federal anunciou medidas emergenciais. A Lei nº 15.245, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, prevê penas de até 12 anos para quem obstrui ações contra organizações criminosas e amplia a proteção a agentes públicos. Também altera o Código Penal e determina que condenados por crimes ligados ao crime organizado cumpram pena em presídios federais de segurança máxima. Juristas alertam, porém, que a norma não cria instrumentos para conter abusos das forças de segurança.

No Congresso, a PEC da Segurança reacendeu o debate. A proposta dá status constitucional ao Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e amplia a cooperação entre União, estados e municípios. Inclui guardas municipais no rol de forças de segurança e cria corregedorias e ouvidorias autônomas, mas também reforça o poder das corporações, sem alterar o modelo que sustenta as chacinas.

Rap como resistência

Décadas antes da chacina, artistas como MV Bill, Racionais MC’s, e agora novas vozes como Oruam e ImEdiAto, já haviam transformado o cotidiano das favelas em crônica social. O microfone, nesse contexto, sempre foi o canal onde o morro pôde falar sem mediação, sem tradução e sem permissão.

No final dos anos 1990, MV Bill, nascido na Cidade de Deus, se tornou uma das vozes mais potentes a romper o silêncio imposto à periferia. Em letras como “Soldado do Morro”, ele descreve o menino que troca o sonho por um fuzil e a rotina de uma comunidade sitiada pela presença constante da polícia e do tráfico.

“Quem deveria dar a proteção invade a favela de fuzil na mão”, escreveu Bill, denunciando a política que trata a pobreza como crime e a juventude preta como inimiga. Sua obra foi mais que música, foi relato e resistência poética.

No mesmo período, o Racionais MC’s lançou “Diário de um Detento”, baseada nas anotações de Jocenir Prado, sobrevivente do massacre do Carandiru. Narrada por Mano Brown, a música transformou em memória coletiva o que o Estado tentou silenciar: o assassinato de 111 presos pela Polícia Militar em 1992.

O verso “Aqui estou mais um dia, sob o olhar sanguinário do vigia / Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK / metralhadora alemã ou de Israel, estraçalha ladrão que nem papel” marcou uma geração e selou o papel do rap como documento histórico. Uma denúncia direta à barbárie institucional à seletividade penal.

Três décadas depois, a mesma estrutura de extermínio se repete, agora nos morros do Rio.

Duas décadas mais tarde, uma nova geração de artistas cariocas mantém acesa essa herança. Oruam, nascido no Complexo da Penha, canta sobre o mesmo território que hoje chora seus mortos. No refrão de “Filho do Dono”, sua voz mistura dor e revolta: “Dia de tragédia com cheiro de morte / o Estado é genocida com o morador.” Oruam cresceu entre becos e batalhas, vendo de perto a distância entre a lei e a justiça. Sua música é o testemunho contemporâneo de que nada mudou, apenas se sofisticou o discurso.

Atravessando gerações, o rapper e ativista ImEdiAto sintetiza o papel histórico do Hip Hop como consciência e resistência. São mais de trinta anos de atuação em que o microfone se tornou instrumento de denúncia e formação política, unindo arte e ação comunitária. Sua análise vai ao encontro da de Ber Cartel: “O sistema cria o crime e finge que combate o crime, eliminando corpos pretos e periféricos.”

ImEdiAto critica a lógica de operações que, sob o pretexto de segurança, revelam um projeto de controle social: “É uma operação sem anestesia, marcada pela arrogância de quem governa para bilionários e financia guerras, mas não salva vidas.”

Cada um desses artistas, em tempos e linguagens diferentes, compõe o mesmo arquivo sonoro da história brasileira, um memorial de resistência que registra o que o Estado tentou apagar.

O rap é o testemunho de um povo que, mesmo sob ameaça, segue rimando para denunciar e sobreviver.

Texto por Lívia Mello
rnrassessoria@gmail.com

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